Treinar
em Seco
Antes
de começar o artigo, tenho que pedir desculpas aos que
acompanham essa coluna, pelo tempo ausente. Mas o motivo é
justo. Comecei a faculdade de Psicologia no período da
manhã, justamente no horário em que eu me dedicava
à elaboração dos artigos.
Vamos
então ao que interessa:
Em
1977, eu me formei na Escola Naval em Engenharia Mecânica
e Bacharel em Ciências do Mar. Minha viagem de Guarda Marinha
(GM) foi em 1978, saindo do Rio de Janeiro no início do
ano e retornando em agosto, após visitar vários
países da Europa e alguns da África. Essa viagem
compõe o último ano de formação do
Oficial de Marinha.
1978
era também o ano do Mundial de Tiro Esportivo, que seria
realizado em Seul, na Coréia do Sul.
Naquela
época, a então CBTA (Confederação
Brasileira de Tiro ao Alvo) realizava TTSS (Torneios Seletivos)
cuja soma dos resultados compunham o ranking para definir a equipe
brasileira para as competições internacionais. Os
torneios seletivos eram feitos simultaneamente nas três
regiões esportivas: Norte-Nordeste, Centro-Brasileira e
Sul-Brasileira, sob a fiscalização de um dirigente
designado pela CBTA.
O
TS1, realizado em janeiro, serviu como seletiva para o VII Torneio
Internacional de Tiro Benito Juarez. Nesse Benito, na prova de
Pistola Livre, fiquei em 3º lugar, com 548 pontos, e a equipe
em 2º lugar (Eu, Paulo Lamego, Dirceu Eloy e Bertino Souza).
Começamos
bem o ano!
Voltei
ao Brasil e embarquei para a viagem de GM.
Para
minha felicidade, o NE Custódio de Melo (Navio Escola)
atracou em Recife justamente no final de semana do TS2. Recife
era o último porto nacional da viagem e local sede dos
TTSS da região Norte-Nordeste. A prova foi no Caxangá
Golf e Country Club. Fiz 552 pontos, ultrapassando o índice
de 550 pontos estabelecido pela CBTA para o Mundial e garanti,
em parte, a minha participação.
Em
parte, porque durante os cinco meses seguintes, enquanto eu cumpriria
a árdua tarefa de conhecer a Europa de navio, a CBTA realizou
mais dois TTSS, dos quais logicamente não pude comparecer.
Minha soma no ranking ficou então com dois resultados a
menos, porém com o índice alcançado.
Aprendi
cedo com o Professor Hermógenes (Filosofia no CMRJ) que
quando queremos muito uma coisa, basta clarificar o objetivo,
não ter nenhuma dúvida de que o alcançaremos
e, como nem tudo é inspiração, trabalhar
duro, dedicando 110% das nossas energias para conquistá-lo.
Para
tal, basta utilizar a seguinte técnica: antes de tomar
qualquer decisão, pergunte-se se o que irá fazer
lhe afasta ou lhe aproxima do seu objetivo? Aproxima, então
faça. Afasta, então não faça. Simples,
muito simples, mas infalível.
Eu
queria muito ir ao Mundial, e tinha como meta ficar entre os 30
primeiros colocados.
Ser
convocado não dependia mais de mim, mas ficar entre os
30 primeiros, só dependia de mim, ou seja, dependia de
me manter treinado durante os próximos cinco meses, dos
quais 70% do tempo eu estaria em alto mar, balançando e
sem poder dar um tiro real. Como nos portos do exterior não
havia como atirar, o treino para o Mundial seria 100% em seco.
Ou seja, cinco meses treinando em seco. Em seco e balançando!
Para
reduzir o efeito do balanço, montei o meu centro de treinamento
físico e técnico num compartimento no centro do
navio, o mais próximo da quilha (se você não
entendeu nada, não tem problema, basta saber que é
o lugar onde o jogo do navio é menor).
Como
acessório de treinamento, só um espelho mais ou
menos da minha altura, para me ver correndo e atirando, e quatro
paredes brancas. Não sei o que era mais difícil,
se treinar em seco por duas horas ou correr quarenta minutos no
mesmo lugar. Isso, todo dia, durante 150 dias. Ou melhor, 120
dias, abatendo os 30 dias de porto.
O
treino consistia nos seguintes exercícios: posição
interior, acionamento de olhos fechados, estática na cruz
e muito tiro em seco na parede branca, incluindo também
provas inteiras em seco, cantando tiro a tiro e registrando o
valor para computar o resultado final dos 60 tiros de prova.
Quando
corria, imaginava no espelho a paisagem que eu queria, criando-a
na mente e refletindo-a no espelho. Dessa forma o exercício
não se tornava monótono, pois eu nunca corria no
mesmo lugar. A coisa só complicava quando o mar ficava
bravo e o chão subia e descia, junto com o estômago.
As
provas em seco serviam para treinar a atitude de competição,
cantando tiro a tiro, e representando na minha mente toda a realidade
competitiva: passando por bons e maus momentos, lidando com tiros
bons e ruins, mantendo e perdendo a concentração,
desviando e retomando a atenção na técnica,
ou seja, tudo o que de fato ocorre numa prova de Pistola Livre.
Por diversas vezes, fiz em seco a prova do Mundial, dos Benitos,
das Copas Latinas, dos Jogos Pan-Americanos e Olímpicos.
O
retiro no cubículo de treino serviu para
criar o hábito da introspecção, me isolando
totalmente do mundo exterior.
O
balanço serviu para gerar uma capacidade de manter a estabilidade
mesmo com o corpo “jogando”, e o mais interessante,
criar um ritmo de tiro regido pelo ciclo das ondas. Interrompendo
o processo, aguardando o momento adequado para iniciá-lo,
mais ou menos como acontece quando há vento e temos que
aguardar a bandeirola acalmar. Como treino físico, acho
que foi muito bom também.
Os
aspectos mais importantes e positivos desse treinamento foram
os seguintes:
Julgo
que dois aspectos me ajudaram muito: o fato de habitualmente já
treinar muito em seco, mesmo quando tinha como atirar com munição
real, e a aspiração de querer muito ir ao Mundial.
Quando
regressei ao Rio, a CBTA já havia fechado a equipe, e,
por não ter participado dos outros TTSS, eu não
estava convocado. Mesmo porque, depois de cinco meses viajando
pelo mundo, sem treinar, como eu iria competir?
Para
minha sorte, eu tinha feito o índice, e nem todos os convocados
na Pistola Livre o tinham alcançado. Com base nesse fato,
argumentei e tive como resposta o seguinte desafio: faria no próximo
final de semana uma prova extra, sozinho, no estande do Flamengo
(campo neutro para mim, que treinava no FFC), observado pela comissão
técnica. Se eu repetisse o índice, iria ao Mundial.
Dei
um treino com tiros reais no sábado e fiz a prova no domingo,
terminando com 553 pontos, resultado que me levou ao Mundial.
Em Seul, fiz 548 pontos e fiquei em 24º lugar.
Essa
passagem me demonstrou o quanto o treino em seco é importante,
e mais, o quanto é importante na vida termos a capacidade
de criarmos nossas realidades de sucesso. No
nosso esporte, essa habilidade representa muito mais do que o
treino físico e técnico. A atitude confiante é
construída com base no trabalho realizado, mas a sua manutenção
nos momentos de stress competitivo é 100% psicológico.
Nesse
mundial, o Brasil, na prova de Pistola de Ar, ficou em 2º
lugar por equipe (Paulo Lamego, Benevenuto Tilli, Wilson Scheidemantel
e Bertino de Souza) e Paulo Lamego, com 388 pontos (a prova na
época era de 40 tiros), ficou com o bronze individual.
Terminamos
bem o ano!